Poucos – na esquerda e no centro – parecem ter atentado para o fato de uma importante
dualidade existente em todos os países ibero-americanos. A população do Brasil, como a dos
demais, se divide em duas camadas. Uma, que reluz na publicidade, e é constituída pelos setores
ricos, poderosos ou então cultos da população, é fortemente cosmopolitizada pelo contato com as
“últimas modas” indumentárias, ideológicas ou outras, sucessivamente lançadas nos grandes centros
mundiais. Esses grandes centros atuam à maneira de vulcões que ejetam assiduamente sobre o
mundo a lava de suas “últimas modas”. E, em nossos dias, para tudo há modas, numa porfia de
extravagância e também de arrojos esquerdizantes: desde as jóias, os trajes (talvez fosse mais exato
dizer “as nudezes”) até ... as teologias. Nesses setores, a tendência para a esquerda constitui
verdadeiramente fator de popularidade. E nos clubes mais ricos, como nos meios de comunicação
social de maior projeção, nas Universidades mais ilustres como em tantos Seminários e Noviciados,
é certo que os vanguardeiros da caminhada para a esquerda contam com possibilidades eleitorais
importantes.
Mas, abaixo dessa superfície reluzente, há um Brasil que é e quer continuar a ser
autenticamente brasileiro, em legítima continuidade com seu passado, e cujos passos se orientam na
linha dessa continuidade, para constituir um Brasil em ascensão, fiel a si próprio, e não o contrário
daquele que ele foi e é.
Esse Brasil profundo, marcadamente majoritário, em quem a nova Constituição vai
provocando susto e rejeição, tem pouca presença na publicidade. Em Brasília e nas grandes capitais
de Estado, ele é sempre mais ignorado. Mas é ele o Brasil real. Como tudo quanto é humano, a esse
Brasil não faltam, a par das qualidades, também defeitos. Ele é algum tanto introvertido, isto é,
voltado sobre si mesmo. Marcam-no certa indolência e o hábito enraigado da rotina.
Mas daí vem que ele nem atente muito para o que se passa na superfície brilhante, que
aflora nos grandes centros urbanos. Em conseqüência, o Brasil profundo deixa-os irem “tocando o
barco” de nossa Federação.
À medida, porém, que o Brasil de superfície caminhe para a extrema-esquerda, irá se
distanciando mais e mais do Brasil de profundidade. E este último irá despertando, em cada região,
do velho letargo.
E de futuro os que atuarem na vida pública de nosso País terão de tomar isto em
consideração. E, em vez de olharem tão preponderantemente para o Brasil cosmopolitizado que se
agita, terão de olhar para o Brasil conservador que constitui parte da população dos grandes centros,
e se patenteia mais numeroso à medida que a atenção do observador desce das grandes cidades para
as médias, das médias para as pequenas, e destas últimas, já meio imersas no campo, para nossas
populações especificamente rurais.
Objetar-se-á talvez que esta análise já não é inteiramente real nos dias de hoje, pois a
televisão está levando o fascínio dos grandes centros até os últimos rincões do Brasil interiorano,
ainda há pouco conservador. E assim os vai transformando.
A objeção tem algo de real. Mas esta impregnação progressista do hinterland brasileiro
constitui fenômeno menos simples do que à primeira vista parece. Há sinais expressivos de que nas
próprias macro-urbes a televisão, à força de se exibir, vai desgastando seu poder de sugestão e, à
força de se requintar na pornografia e na estridência de todas as extravagâncias publicitárias, vai se
tornando “carne de vaca”. O que, por sua vez, aumenta a resistência a ela no Brasil profundo. (...)
Chegar-se-á assim a um desacerto gravíssimo entre o Brasil de superfície e o Brasil profundo, o
Brasil constitucional e o Brasil real. E tal desacerto será ainda maior à medida que a aplicação das
famigeradas reformas sócio-econômicas for metendo as garras nos patrimônios dos particulares.
Esta afirmação não tem o caráter de uma conjectura. A Reforma Agrária vai-se tornando
cada vez menos viável, à medida que mais amplamente se aplica. E já agora se acha em estado de
impasse evidente. (...)
Quando as três Reformas [Agrária, Urbana e Empresarial] correrem paralelas, o que se vai passando no Brasil profundo
face à Reforma Agrária, se irá, dando, sobretudo nas camadas conservadoras dos centros urbanos,
com as demais Reformas.
Qual o resultado de tudo isto? Empilhar os fatores de incompreensão e de indignação uns
sobre os outros.
Desse modo, indigne a quem indignar, custe o que custar, doa a quem doer, certo Brasil de
superfície nos irá arrastando para o esquerdismo radical, com a fundada alegação de estar aplicando
a nova Constituição.
O reformismo festivo parece não se incomodar com isto. Mas cada vez mais serão raros os
partícipes de sua alegre farândola, ganhos gradualmente pelo sentimento de inconformidade e
apreensão nascido, a justo título, das camadas mais profundas da população.
Fonte: Projeto de Constituição angustia o País, pp. 196-197
Um comentário:
Parece ter sido escrito ontem...e pensar que foi há mais de 25 anos...
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