Sou tomista convicto. O aspecto da Filosofia pelo qual mais me interesso é a Filosofia da História. Em função deste encontro o ponto de junção entre os dois gêneros de atividade em que me venho dividindo ao longo de minha vida: o estudo e a ação. O ensaio em que condenso o essencial de meu pensamento explica o sentido de minha atuação ideológica. Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução.

31 de maio de 2015

A Universidade, o império das idéias e o governo do mundo

Todos os homens são governados: poucos sabem precisamente quem os governa. Para o analfabeto, o governo se encarna inteiramente nos agentes mais subalternos do Poder, no Juiz de Paz, no sub-delegado, no inspetor de trânsito ou no meirinho. Eles são símbolos vivos do Estado, por cima ou por detrás dos quais se confundem numa auréola imprecisa e quase irreal as figuras demiúrgicas dos altos governantes. O homem de instrução primária fita essa auréola sem se deslumbrar e discerne melhor os personagens de categoria, nos quais a idéia de Estado e de Governo se encarna. Só o súdito de horizontes um pouco mais largos chega a perceber que, por detrás dos governantes, existe a lei, o Direito, a ordem natural, forças invisíveis e imponderáveis, a que toca entretanto a mais alta parcela do verdadeiro poder. Mas, é forçoso dizer, poucos são os que transcendem desta esfera comum, para discernir a influência das várias forças sociais no governo dos homens. Sabe-se, por exemplo, de modo impreciso, que o dinheiro é o nervo de muitos acontecimentos. Poucos, porém, seriam os que lhe poderiam apontar concretamente as artimanhas e manejos. À medida que se sobe na escala de cultura, as noções sobre o governo vão - é óbvio - tornando-se menos pessoais, mais genéricas, ricas e precisas. Mas serão pouquíssimos os que possam atinar com a verdade fundamental. Para a descobrir, não basta inteligência nem cultura. É preciso algo incomparavelmente mais precioso: bom senso, e o que o bom senso ensina é que os homens são governados por forças mais ativas e subtis do que a espada ou mesmo o ouro. Diga-se o que se disser, o mundo sempre foi e será sempre governado pelas idéias.

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Não me refiro, é claro, só à influência do pensamento das esferas da alta intelectualidade. Enganam-se os observadores superficiais que julgam que o mundo de hoje escapou ao domínio dos pensadores profundos, porque os in-folios destes se cobrem por vezes de poeira, ignorados e obscuros, nas prateleiras de certas bibliotecas. A glória do intelectual é que ele domina até quando parece não dominar. Obedecem-lhe os que nunca o leram, e talvez nem sequer lhe tenham ouvido o nome. Na opinião daquele varredor de rua ou na concepção de vida daquela modesta lavadeira, pode haver, obscuras, ignoradas, influências de São Tomás ou de Hegel, que nem por isso são menos ativas e importantes.

É que as idéias passam das altas paragens da vida intelectual para a massa da sociedade, não só pela aula ou pelo livro, mas por uma osmose multiforme e obscura, em que está sua maior capacidade de expansão. Elas filtram da Filosofia ou da Teologia para as outras ciências, invadem muito de manso o terreno das artes, fornecem à grande feira de idéias, que é a imprensa, a matéria-prima para o varejo quotidiano, propagam-se pelos resumos, pelas repetições e pelo plágio, e, assim repetidas de mil modos, correm cidades e campos, transpõem montes e mares, espreitam o momento mais oportuno para tomar de assalto as mentalidades, e acabam dirigindo o modo de sentir e de agir, de viver, de trabalhar, de descansar e até de morrer de milhares de seres, com uma precisão e uma segurança que o decreto policial mais tirânico jamais lograria alcançar.

Paul Bourget escreveu que toda a vida, mesmo mais apagada e trivial, é uma metafísica em ação. Não espanta pois, que o verdadeiro governo do mundo pertença aos apóstolos da metafísica e da mística, ou aos fabricantes de místicas e metafísicas. Diga-se o que se disser, o mundo há de ser governado por uns ou por outros.

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Não espanta, pois, que vejamos a sede do verdadeiro governo do mundo, não nas assembléias legislativas ou diplomáticas ruidosas e inúteis, de que tanto se ocupa a imprensa, mas nas universidades onde silenciosamente se elabora o futuro das almas e das nações.

Durante muito tempo, o Brasil viveu sem verdadeira harmonia entre a cultura superior e o Catolicismo: o resultado é que tudo quanto em um país é obra de alto estudo, se fez entre nós sem a Igreja ou contra ela: as leis, a literatura, a arte, o curso geral do pensamento.

Fonte: "O Cardeal Cerejeira e a Universidade Católica", Legionário, nº 734, 1.09.1946

27 de maio de 2015

Quid est veritas?

Ainda que não tivéssemos as narrativas evangélicas a nos mostrar eloqüentemente a sinuosidade de inteligência e de caráter de Pilatos, poderíamos fazer uma idéia bastante segura de sua mentalidade através do seu imortal "quid est veritas?"

Abstraindo da feição religiosa do diálogo entre Nosso Senhor e Pôncio Pilatos, não podemos deixar de considerar a beleza histórica da cena rapidamente relatada pelos Evangelhos.

O diálogo entre o pretor romano e a inocente vítima de sua covardia representa o diálogo entre uma época que se extinguia, nos últimos lampejos de uma civilização decadente, e outra época que nascia no sangue e na aparente infâmia da Cruz, mas que, dentro de alguns séculos, desabrocharia numa aurora suave de doce vitória, trazendo aos homens desvairados o doce lenitivo de uma doutrina de salvação.

O pretor romano é pintado ao vivo pelo "quid est veritas?" com que quis confundir a Nosso Senhor.

O romano civilizado, cujos sentidos já se haviam maravilhado em todos os deleites de uma sociedade que vivia para o prazer, o romano instruído, cuja inteligência inquieta havia percorrido ansiosamente todos os sistemas filosóficos que cientistas medíocres expunham no mercado literário de Roma, tal qual os modistas quando expunham os últimos tecidos exóticos chegados do Oriente, o homem vencido pelo prazer, incapaz de se desvencilhar de sua sensualidade, cuja personalidade soçobrava num mare-magno de doutrinas confusas e imperfeitas, no relaxamento de seus sentidos insatisfeitos, o pobre romano, triste vítima da pestilência de uma época prestes a morrer, exala através do "quid est veritas?" todo o azedume de quem sente ao redor de si somente as ruínas nascidas dos próprios desvarios de sua razão e de seus sentidos.

E o humilde Nazareno, que passara uma vida de privações e de abnegação, e que, jovem, belo e formoso, iria morrer pelos seus algozes, sustentando uma verdade de que se dizia a encarnação, representa exatamente o pólo oposto.

É o contraste magnífico entre o abismo cheio de umidade, de trevas e de frio, e o cume elevadíssimo de uma montanha cheia de luz, de harmonia e de beleza.

Não venceu o pretor orgulhoso. O sibarita cético que, entre ansioso e indiferente, parecia ter procurado a verdade infrutiferamente, foi estrondosamente vencido pela vítima humilde, que regou com sangue suas próprias doutrinas, e substituiu o sistema de dúvida e negação de Pilatos por um sistema de afirmação e construção que, durante tantos séculos, a humanidade civilizada admirou!

E o dito do pretor cético foi relembrado pela Igreja, durante séculos inteiros, aos povos prosternados nas góticas catedrais, por ocasião da Semana Santa, como o brado de insensatez e desespero de uma civilização prestes a naufragar. O "quid est veritas?" de Pilatos, pronunciado na agonia da civilização romana, equivale ao "vicisti tandem, Galilaeu, vicisti", que Juliano, o Apóstata, legou ao mundo ao morrer, como último desabafo de um coração revoltado.

São ambos gritos de revolta e de desespero, diante da vitória da Verdade, que vai surgir.

Fonte: "Quid est veritas?", Legionário, nº 64, 24.08.1930