Sou tomista convicto. O aspecto da Filosofia pelo qual mais me interesso é a Filosofia da História. Em função deste encontro o ponto de junção entre os dois gêneros de atividade em que me venho dividindo ao longo de minha vida: o estudo e a ação. O ensaio em que condenso o essencial de meu pensamento explica o sentido de minha atuação ideológica. Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução.

27 de maio de 2015

Quid est veritas?

Ainda que não tivéssemos as narrativas evangélicas a nos mostrar eloqüentemente a sinuosidade de inteligência e de caráter de Pilatos, poderíamos fazer uma idéia bastante segura de sua mentalidade através do seu imortal "quid est veritas?"

Abstraindo da feição religiosa do diálogo entre Nosso Senhor e Pôncio Pilatos, não podemos deixar de considerar a beleza histórica da cena rapidamente relatada pelos Evangelhos.

O diálogo entre o pretor romano e a inocente vítima de sua covardia representa o diálogo entre uma época que se extinguia, nos últimos lampejos de uma civilização decadente, e outra época que nascia no sangue e na aparente infâmia da Cruz, mas que, dentro de alguns séculos, desabrocharia numa aurora suave de doce vitória, trazendo aos homens desvairados o doce lenitivo de uma doutrina de salvação.

O pretor romano é pintado ao vivo pelo "quid est veritas?" com que quis confundir a Nosso Senhor.

O romano civilizado, cujos sentidos já se haviam maravilhado em todos os deleites de uma sociedade que vivia para o prazer, o romano instruído, cuja inteligência inquieta havia percorrido ansiosamente todos os sistemas filosóficos que cientistas medíocres expunham no mercado literário de Roma, tal qual os modistas quando expunham os últimos tecidos exóticos chegados do Oriente, o homem vencido pelo prazer, incapaz de se desvencilhar de sua sensualidade, cuja personalidade soçobrava num mare-magno de doutrinas confusas e imperfeitas, no relaxamento de seus sentidos insatisfeitos, o pobre romano, triste vítima da pestilência de uma época prestes a morrer, exala através do "quid est veritas?" todo o azedume de quem sente ao redor de si somente as ruínas nascidas dos próprios desvarios de sua razão e de seus sentidos.

E o humilde Nazareno, que passara uma vida de privações e de abnegação, e que, jovem, belo e formoso, iria morrer pelos seus algozes, sustentando uma verdade de que se dizia a encarnação, representa exatamente o pólo oposto.

É o contraste magnífico entre o abismo cheio de umidade, de trevas e de frio, e o cume elevadíssimo de uma montanha cheia de luz, de harmonia e de beleza.

Não venceu o pretor orgulhoso. O sibarita cético que, entre ansioso e indiferente, parecia ter procurado a verdade infrutiferamente, foi estrondosamente vencido pela vítima humilde, que regou com sangue suas próprias doutrinas, e substituiu o sistema de dúvida e negação de Pilatos por um sistema de afirmação e construção que, durante tantos séculos, a humanidade civilizada admirou!

E o dito do pretor cético foi relembrado pela Igreja, durante séculos inteiros, aos povos prosternados nas góticas catedrais, por ocasião da Semana Santa, como o brado de insensatez e desespero de uma civilização prestes a naufragar. O "quid est veritas?" de Pilatos, pronunciado na agonia da civilização romana, equivale ao "vicisti tandem, Galilaeu, vicisti", que Juliano, o Apóstata, legou ao mundo ao morrer, como último desabafo de um coração revoltado.

São ambos gritos de revolta e de desespero, diante da vitória da Verdade, que vai surgir.

Fonte: "Quid est veritas?", Legionário, nº 64, 24.08.1930

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