Sou tomista convicto. O aspecto da Filosofia pelo qual mais me interesso é a Filosofia da História. Em função deste encontro o ponto de junção entre os dois gêneros de atividade em que me venho dividindo ao longo de minha vida: o estudo e a ação. O ensaio em que condenso o essencial de meu pensamento explica o sentido de minha atuação ideológica. Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução.

9 de setembro de 2015

Ferido e maltratado em sua natureza, o homem contemporâneo anseia pela tradição

Sob o bafejo da Igreja, a Civilização Cristã levou ao apogeu esta bela arte dos costumes e dos símbolos sociais. Veio daí a maravilhosa distinção e afabilidade de maneiras do europeu, e por extensão dos povos americanos nascidos da Europa; os princípios da Revolução de 1789 se incumbiram de a golpear fundamente.

Os títulos de nobreza, os sinais da heráldica, as condecorações, as regras do protocolo, não foram outra coisa senão meios admiráveis, cheios de tacto, de precisão e de significado, para definir, graduar e modelar as relações humanas dentro dos quadros políticos e sociais então existentes. A ninguém ocorreria ver nisto mera vaidade. A própria Igreja, que é mestra de todas as virtudes e combate todos os vícios, instituiu títulos de nobreza, distribuiu e distribui condecorações, elaborou para si todo um cerimonial de uma admirável precisão no definir todas as diferenças hierárquicas - que a lei divina e a sabedoria dos Papas foi criando em seu grêmio ao longo dos séculos. Sobre as condecorações, disse o Bem-aventurado Pio X:

"As recompensas concedidas ao valor contribuem poderosamente para suscitar nos corações o desejo de ações relevantes, porque glorificam os homens notáveis que bem mereceram da Igreja ou da sociedade, e, com isso, arrastam os outros pelo exemplo a percorrer o mesmo caminho de glória e de honra. Com esta sábia intenção, os Pontífices Romanos, Nossos Predecessores, cercaram de um amor especial as Ordens eqüestres, como estimulantes de glória" ( Breve sobre as Ordens eqüestres, pontifícias, de 7 de fevereiro de 1905 )

Que haja pois uma insígnia para o cargo supremo do Estado, insígnias próprias para as pessoas de estirpes mais ilustres, trajes de gala para os dignitários incumbidos das funções de maior importância política, que todo o aparato destes símbolos seja utilizado na cerimônia de posse do Chefe do Estado, em tudo isto não há mascarada, nem concessões a fraquezas. Há apenas a observância de regras de procedimento inteiramente conformes com a ordem natural das coisas.

Modernização estúrdia - Mas, dirá alguém, não seria conveniente modernizar todos estes símbolos, atualizar todas estas cerimônias? Por que conservar ritos, fórmulas, trajes do mais remoto passado?

A pergunta é de um simplismo primário. Os ritos, as fórmulas, os trajes, para exprimirem situações, estados de espírito, circunstâncias realmente existentes, não podem ser criados ou reformados bruscamente e por decreto, mas sim gradualmente, lentamente, em geral imperceptivelmente, pela ação do costume. Ora, este processus de transformação, a Revolução Francesa com toda a sua seqüela de acontecimentos o tornou impossível. Pois a humanidade se deixou fascinar pela miragem de um igualitarismo absoluto, votou desprezo e até ódio a tudo quanto, no terreno dos costumes, exprime desigualdade, e instituiu uma ordem de coisas nova, baseada sobre a tendência para o nivelamento inteiro, a abolição de todas as etiquetas e todas as pragmáticas. Imbuída deste espírito, ela perdeu a capacidade de tocar nas coisas do passado para outro fim, senão para as destruir. Se o homem contemporâneo fosse reformar ritos e instituir símbolos, como a Revolução Francesa criou nele a adoração da lei e o desprezo do costume, ele procuraria, ademais, fazê-lo por decreto. E ainda uma vez, nada é mais irreal, mais caricato, em muitos casos mais perigoso, do que as realidades sociais que se imagina poder criar por lei. A corte de opereta, rutilante, farfalhante, e profundamente vulgar de Napoleão o demonstrou bem.

Destruir por destruir - Mas, é preciso acrescentar que o simples fato de um rito ou símbolo ser muito antigo, não é motivo para o abolir, mas antes para o conservar. O verdadeiro espírito tradicional não destrói por destruir. Pelo contrário, ele conserva tudo, e só destrói aquilo que há motivos reais e sérios para destruir. Pois a verdadeira tradição, se não é uma esclerosação, uma fixação hirta no passado, ainda muito menos é uma negação constante deste. A este propósito, permita-se-nos citar mais uma página magistral de Pio XII. Dirigindo-se à Nobreza e ao Patriciado Romano ("Osservatore Romano" de 19 de Janeiro de 1944), e referindo-se à tradição que a aristocracia da Cidade Eterna ali representava, disse o Pontífice:

"Muitos espíritos, mesmo sinceros, imaginam e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o polido vestígio de um passado que não existe mais, que não pode voltar, e que quando muito é relegado, com veneração se tanto e com reconhecimento, à conservação de um museu, que poucos amadores ou amigos visitam. Se nisto consistisse e a isto se reduzisse a tradição, e se importasse em recusa ou desprezo do caminho do porvir, seria razoável negar-lhe respeito e honra, e seria para se olharem com compaixão os sonhadores do passado, retardatários face ao presente e ao futuro, e com maior severidade aqueles que, movidos por menos respeitáveis e puras intenções, mais não são do que desertores dos deveres da hora que se mostra tão lutuosa.

"Mas a tradição é coisa muito diferente de simples apego a um passado desaparecido, é justamente o contrário de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo, etimologicamente, é símbolo de caminho e marcha para a frente; sinonímia, e não identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar para a frente, passo a passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz de acordo com as leis da vida, escapando à angustiosa alternativa: "si jeunesse savait, si vieillesse pouvait", semelhante àquele Senhor de Turenne do qual foi dito: "il a eu dans sa jeunesse toute la prudence d'un age avancé, et dans un age avancé toute la vigueur de la jeunesse" ( Fléchier, Oração Fúnebre, 1676 )

"Por força da tradição, a juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mãos mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica com seu nome, a tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare ou arrefeça de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a tradição sem progresso se contradiria a si mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro.

"Não, não se trata de subir contra a correnteza, de retroceder para formas de vida e de ação de idades já passadas, mas sim de, aceitando e seguindo o que o passado tem de melhor, caminhar ao encontro do futuro com o vigor de imutável juventude". 

Nostalgia de uma sã ordem natural - Ora, foi precisamente com esta tradição que o mundo contemporâneo rompeu, para adotar um progresso nascido, não do desenvolvimento harmônico do passado, mas dos tumultos e dos abismos da Revolução Francesa. Num mundo nivelado, paupérrimo em símbolos, regras, maneiras, compostura, em tudo que signifique ordem e distinção no convívio humano, e que a todo momento continua a destruir o pouquíssimo que disto lhe resta, enquanto a sede de igualdade se vai saciando, a natureza humana, em suas fibras profundas, vai sentindo cada vez mais a falta daquilo com que tão loucamente rompeu. Alguma coisa de muito interior e forte dentro dela lhe faz sentir um desequilíbrio, uma incerteza, uma insipidez, uma pavorosa trivialidade de vida, que tanto mais se acentua quanto mais o homem se enche dos tóxicos da igualdade.

A natureza tem reações súbitas. O homem contemporâneo, ferido e maltratado em sua natureza por todo um teor de vida construído sobre abstrações, quimeras, teorias vácuas, nos dias da coroação se voltou embevecido, instantaneamente rejuvenescido e repousado, para a miragem deste passado tão diferente do terrível dia de hoje. Não tanto por nostalgia do passado, quanto de certos princípios da ordem natural que o passado respeitava, e que o presente viola a todo momento. Eis a nosso ver a explicação mais profunda e mais real do entusiasmo que empolgou o mundo durante as festas da coroação.

Fonte: "Por que o nosso mundo pobre e igualitário se empolgou com o fausto e a majestada da coroação?", Catolicismo, nº 31, julho de 1953

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